domingo, 17 de fevereiro de 2013

Tejo

                                       

TEJO 

Vamos descendo a encosta aos tropeções, pelo caminho aberto pela escavadora que insiste em sulcar a massa xistosa que se desprende vale abaixo, abrindo um caminho serpentiforme, como que o prenúncio de algumas das formas que, gravadas, encontraremos nas rochas que ladeiam o rio.
 Mais uma curva e, coado pela nuvem de poeira que os nossos pés levantam, surge-nos o Tejo invadindo as margens, apropriando-se delas como que a querer ficar-se por ali, guardião de uma propriedade que lhe pertence.
 
Uma plataforma rochosa, miradouro natural, deixa-nos suspensos sobre o rio. A nossos pés, realmente sob os nossos pés, os barqueiros que nos 
esperam retiram a água que a velha barca deixa entrar.
 
Mãos em concha à volta da boca, como há já muito tempo se fazia, estabeleceu-se o contacto, demos-lhes conta da nossa chegada.

Continuámos a descida, agora aliviada pela visão do rio e das suas margens,   objecto da nossa "exploração". 

Suspensos de um céu refletido nas águas conquistamos a ausência de gravidade e atravessamos o rio. Não se ouve sequer o soar dos remos que os músculos tensos do barqueiro nele cravam.

0 grupo é conduzido pelo Francisco Henriques, arqueólogo ligado à origem de todo o trabalho ali desenvolvido, profundo conhecedor das gentes e do local, elemento indispensável para o sucesso de qualquer visita aos sítios arqueológicos da região. Saltitamos de pedra em pedra no Cachão de S. Simão, escorregando aqui, apoiando acolá as mãos em alguma lâmina de xisto mais elevada. Aparecem então as primeiras gravuras, referências obrigatórias da arte rupestre. Antropomórficas umas, zoomórficas outras, serpentiformes muitas, e sóis, muitos sóis, que também nós vamos venerando como o fizeram os primeiros habitantes do vale do Tejo. 
 
Ajudado pela Sónia, minha filha, estudante de Antropologia, vou tomando as primeiras notas, e juntos vamos descobrindo o modo de fotografar as gravuras (o sol balança-se por perto do zénite, o que facilita a leitura das que se encontram em posição vertical, mas prejudica a das que estão na horizontal). 

O Canau Espadinha, escultor, quarto elemento deste grupo que começa a sofrer os efeitos da desidratação e da falta de alimentos - sem darmos por isso, fomos atirados para as quatro da tarde - perde-se pela aridez da margem, explorando e registando a riqueza das texturas e o cromatismo das lâminas de xisto e, providencial, encontra um pouco de sombra onde abrigarmos a cabeça, visto ser impossível encontrar uma área que nos proteja mais do que isso. 

A comoção causada pelo rigor formal das gravuras e pelas soluções estéticas encontradas era tal que contagiou o grupo.  

Recordo a surpresa que foi a descoberta de uma gravura cujo tema é um antropomorfo levantando um veado morto, como que oferecendo-o ao sol. O recorte do picotado, a mestria oficinal e o modo delicado de o conceber são de um rigor tal que mais parecem saídos do cinzel de um ourives, de tão finamente recortadas e precisas que são as ritmadas incisões. 

E isto revela um cuidado labor, um elevado nível não apenas técnico mas também cultural das gentes que ali viveram e que lavraram as pedras das margens do Tejo nelas plasmando as suas crenças, os seus fetiches, os ícones que, como acreditavam, os ajudavam a sobreviver. Ou a viver. 

Com estes registos ficámos a saber muito mais sobre a história destes Homens. 

Este texto é a versão de um outro com o mesmo título que escrevi para o catálogo[1] da exposição que apresentava o conjunto de obra gráfica inspirado nas gravuras do Vale do Tejo em Ródão, na sequência da primeira visita àquele complexo de arte rupestre.

Foi publicado na edição nº 4 da Revista AÇAFA On Line, nos 40 anos do início da descoberta da Arte Rupestre do Tejo (Associação de Estudos do Alto Tejo).


[1] David de Almeida - Catálogo de Exposição, 1993, Galeria da Livraria Portuguesa. Instituto Cultural de Macau,

 

 

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