TEJO
Vamos
descendo a encosta aos tropeções, pelo caminho aberto pela escavadora que insiste
em sulcar a massa xistosa que se desprende vale abaixo, abrindo um caminho
serpentiforme, como que o prenúncio de algumas das formas que, gravadas,
encontraremos nas rochas que ladeiam o rio.
Uma plataforma rochosa, miradouro natural, deixa-nos suspensos sobre o rio. A nossos pés, realmente sob os nossos pés, os barqueiros que nos
esperam retiram a água que a velha barca deixa entrar. Mãos em concha à volta da boca, como há já muito tempo se fazia, estabeleceu-se o contacto, demos-lhes conta da nossa chegada.
Continuámos a descida, agora aliviada pela visão do rio e das
suas margens, objecto da nossa "exploração".
Suspensos
de um céu refletido nas águas conquistamos a ausência de gravidade e
atravessamos o rio. Não se ouve sequer o soar dos remos que os músculos tensos
do barqueiro nele cravam.
0 grupo é
conduzido pelo Francisco Henriques, arqueólogo ligado à origem de todo o
trabalho ali desenvolvido, profundo conhecedor das gentes e do local, elemento
indispensável para o sucesso de qualquer visita aos sítios arqueológicos da
região. Saltitamos de pedra em pedra no Cachão de S. Simão, escorregando aqui,
apoiando acolá as mãos em alguma lâmina de xisto mais elevada. Aparecem então
as primeiras gravuras, referências obrigatórias da arte rupestre.
Antropomórficas umas, zoomórficas outras, serpentiformes muitas, e sóis, muitos
sóis, que também nós vamos venerando como o fizeram os primeiros habitantes do
vale do Tejo.
Ajudado
pela Sónia, minha filha, estudante de Antropologia, vou tomando as primeiras
notas, e juntos vamos descobrindo o modo de fotografar as gravuras (o sol
balança-se por perto do zénite, o que facilita a leitura das que se encontram em
posição vertical, mas prejudica a das que estão na horizontal).
O Canau Es padinha, escultor, quarto elemento deste grupo que
começa a sofrer os efeitos da desidratação e da falta de alimentos - sem darmos
por isso, fomos atirados para as quatro da tarde - perde-se pela aridez da
margem, explorando e registando a riqueza das texturas e o cromatismo das
lâminas de xisto e, providencial, encontra um pouco de sombra onde abrigarmos a
cabeça, visto ser impossível encontrar uma área que nos proteja mais do que
isso.
A comoção
causada pelo rigor formal das gravuras e pelas soluções estéticas encontradas era
tal que contagiou o grupo.
Recordo a
surpresa que foi a descoberta de uma
gravura cujo tema é um antropomorfo levantando um veado morto, como que
oferecendo-o ao sol. O recorte do picotado, a mestria oficinal e o modo
delicado de o conceber são de um rigor tal que mais parecem saídos do cinzel de um ourives, de tão finamente recortadas e
precisas que são as ritmadas incisões.
E isto
revela um cuidado labor, um elevado nível não apenas técnico mas também
cultural das gentes que ali viveram e que lavraram as pedras das margens do
Tejo nelas plasmando as suas crenças, os seus fetiches, os ícones que, como
acreditavam, os ajudavam a sobreviver. Ou a viver.
Com estes
registos ficámos a saber muito mais sobre a história destes Homens.
Este texto é a versão de um outro com o
mesmo título que escrevi para o catálogo[1]
da exposição que apresentava o conjunto de obra gráfica inspirado nas gravuras
do Vale do Tejo em Ródão, na sequência da primeira visita àquele complexo de
arte rupestre.
Foi
publicado na edição nº 4 da Revista AÇAFA On Line, nos 40 anos do
início da descoberta da Arte Rupestre do Tejo (Associação de Estudos do Alto Tejo).
[1] David de Almeida - Catálogo de Exposição, 1993, Galeria da Livraria
Portuguesa. Instituto Cultural de Macau,
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